Sou o poema que escrevi sobre a rua do casario
a caminho do rio
que se ouvia cantar
a canção da cachoeira
- na calada da noite
fazendo serenata
para peixe a feixe noturno
- bagre, lambari, piaba, mandi amarelo com barbatanas,
dourado no anzol
a rutilar nas escamas do sol de ouro em luz
- todos nadando no orvalho
da seresta
celestial
ao madrigal
terrenal
dentro das falenas
em noturnas rondas
a encapsular a madrugada
numa aldeia rota
- fora da rota
ignota
Sou o casario e o rio cantante
borbulhante
e me miro no espelho escrito em signos e símbolos
que são meus poemas
e textos em prosa
- Narcisos de face enlameada
em debrum sobre e sob signos
face ao símbolo do mito
espectral
( Sei do mal da bruxa
pois algum tempo vivi com Circe
outros tempos com outros seres
menos malévolos
ou não tão maléficos
- Que minha poesia
em tênue liame
tece sua teia
enreda sua rede
na polifonia do coro
e no contraponto gritante
que parece lhe levar a unidade
e a coerência )
Sou a lua falciforme
em solidéu sobre o casario
como um chapéu no céu
- véu negro ou anil
a guedelha de ameixas
com os riscos de carvão
do céu em noturno
ao piano
ou em pianíssimo
- Chopin!
Sou a rua do casario
cuja descrição fiz
e o poeta que imaginei
habitando aquela viela
numa casa vetusta
que seria uma vela ao mar
se o mar não fosse o rio
batizada por São Francisco
quando veio de Assis
para o mundo dos nigromantes
- Necromantes
Sou o que penso
- também o que não penso
e a memória de mim
em outros seres humanos
e minha poesia em tênue liame
tece sua teia
enreda sua rede
na polifonia do coro
em contraponto gritante
Sou o arqueiro
que me lanço
lance a lance
na escada e caracol
- concha acústica
de molusco
( e na flecha de Zeno de Eléia
que pensa o paradoxo do movimento )
Sou aquela noite
que corri para abraçar inteira
e para isso tive que sair de casa
porque tudo é pequeno e apertado
ante a imensidão e mansidão
- vastidão!
da noite mansa e pacífica
úmida na ponta do dedo da grama
- a noite que é um corpo imenso para amplexo
e ósculo
e que desce pela madrugada fora
cantando com galos
miando com gatos
latindo com cães
arrulhando no arroio de rocio
sem arroubo pueril...
Sou o poeta que nasceu e se levantou
do rio de orvalho
que separa a madrugada dos outros tempos
de outros fluentes afluentes
da fluviosidade e da pluviosidade
O vate, o aedo, o trovador, o menestrel,
o bardo que morreu afogado
no arroio do rocio
em aboio no comboio do boi
ou do goivo noivo da folha lanceolada
Sou a cachoeira que ouvi cantarolar
a lua pálida e medrosa que vi
o odor da grama
e a sensação de sua umidade rascante
o sabor e frescor da água que bebi
a dor doída do druida
que me sinto
- perdido nas brumas do tempo
antes do advento do templo
e dos cavaleiros do templo
cruzar a terra santa
em busca do sangue de Cristo
( Santo Graal?!)
Sou o fantasma do poeta claudicante
que vivia naquela travessa
quando o tempo tinha outra carnação
outro punhado de areia no solo
outra água no pote do rio
outros vegetais e animais
a mais
- Até vaga-lumes vagavam
acendendo e apagando um pedaço ínfimo da noite
partida em versos verdejantes
que partiram o coração
- partido!
( Aquela rua do casario
é uma viela roubada
à aldeia enclavada em minha imaginação
- butim do império romano atuante
que toca o coração
com a lira cretense
instrumento antecessor do violino
- e eu o poeta nativo
aborígene
autóctone
- o escritor apócrifo )
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